terça-feira, 28 de outubro de 2014

Grande Edgar!

"Já deve ter acontecido com você.

- Não está se lembrando de mim?

Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra?

Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir.

Um, o curto, grosso e sincero.

- Não.

Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O “Não” seco pode até insinuar uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você devia ter vergonha. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.

Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.

- Não me diga. Você é o... o...

“Não me diga”, no caso, quer dizer “Me diga, me diga”. Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com a sua agonia. Ou você pode dizer algo como:

- Desculpe deve ser a velhice, mas...

Este também é um apelo à piedade. Significa “Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!” É uma maneira simpática de dizer que você não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.

E há o terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.

- Claro que estou me lembrando de você!

Você não quer magoá-lo, é isso. Há provas estatísticas que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:

- Há quanto tempo!

Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.

- Então me diga quem eu sou.

Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:

- Pois é.

Ou:

- Bota tempo nisso.

Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas do meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como “jabs” verbais.

- Como cê tem passado?

- Bem, bem.

- Parece mentira.

- Puxa.

(Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)

Ele está falando:

- Pensei que você não fosse me reconhecer...

- O que é isso?!

- Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.

- E eu ia esquecer você? Logo você?

- As pessoas mudam. Sei lá.

- Que idéia!

(É o Ademar! Não, o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode chutá-lo, amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. “Que bom encontrar você!” e paf, chuta uma perna. “Que saudade!” e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)

- É incrível como a gente perde contato.

- É mesmo.

Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.

- Cê tem visto alguém da velha turma?

- Só o Pontes.

- Velho Pontes!

(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)

- Lembra do Croarê?

- Claro!

- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.

- Velho Croarê!

(Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)

- Rezende...

- Quem?

Não é ele. Pelo menos isso está esclarecido.

- Não tinha um Rezende na turma?

- Não me lembro.

- Devo estar confundindo.

Silêncio. Você sente que está prestes a ser desmascarado.

- Sabe que a Ritinha casou?

- Não!

- Casou.

- Com quem?

- Acho que você não conheceu. O Bituca.

Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?

- Claro que conheci! Velho Bituca...

- Pois casaram...

É a sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.

- E não me avisaram nada?!

- Bem...

- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!

- É que a gente perdeu contato e...

- Mas o meu nome está na lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.

- É...

- E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que esqueceram de mim!

- Desculpe, Edgar. É que...

- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam...

(Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de “Já?!”)

- Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?

- Certo, Edgar. E desculpe, hein?

- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.

- Isso.

- Reunir a velha turma.

- Certo.

- E olha, quando falar com a Ritinha e o Mutuca...

- Bituca.

- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?

- Tchau, Edgar!

Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer “Grande Edgar”. Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar “Você está me reconhecendo?” não dirá nem não. Sairá correndo."



Luiz Fernando Veríssimo

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Noite de verão

Era uma noite de verão. A casa estava quente, as janelas escancaradas, mas o ar estava abafado. Ela estava respirando na mesma frequência de um pássaro e tão baixo quanto um gato. Ela procurava se esconder da luz da lua que penetrava o vidro. Mas ele estava ali, tão assustador e devastador quanto a sua imagem poderia ser. Nenhum resquício de humanidade havia sobrado naquela figura. Havia sangue no chão e havia morte no ar, no entanto, ela não entendia como ainda podia estar viva. Ele sabia que ela ainda respirava, sabia qual perfume ela estava usando e sabia que ela ainda rastejava sorrateira pelos cantos escuros das paredes. E foi naquele milésimo de segundo de descaso que ele a percebeu: trancafiada num banheiro, tão branco quanto a última lembrança de vida poderia ser. E sem resistir ela esperou – durante os três minutos mais longos que ela conseguia se lembrar. Com a sutileza de um terremoto ele entrou naquele manicômio. Aproximou-se, tocou seus cabelos, desenhou todas as linhas de seu corpo com a ponta de suas garras, levantou-a do chão, levou-a para junto de seu peito coberto de pêlos e com o último gesto de sutileza existente naquela monstruosidade, tocou-a na testa com os lábios. Ele então deixou algo escapar – um berro que quase lembrava um choro – e então ela entendeu. Entendeu quem ele era. Entendeu que ele jamais conseguiria ser algo diferente daquela besta e que por mais que ele tentasse viver como um homem ele sempre voltaria para ela como um lobo. Então ela aceitou, fechou os olhos e esperou que ele tomasse o último suspiro de paixão que nela existia.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Numa manhã...

  Sentia-me totalmente entediada, olhei no relógio no qual marcava apenas 10 horas, parecia uma eternidade até as 11h30. Fitava com desgosto todos ao meu redor, a professora falava mas praticamente ninguém a notava ali em pé, gesticulando e gesticulando, minhas amigas me irritavam com aqueles comentários idiotas, o fundo fazia tanto barulho que minha cabeça latejava e parecia prestes a explodir. Abaixei-me para descansar, apoiando minha cabeça na mesa fria, e aparentemente a dor ia se esvaindo, mas de súbito ouvi um barulho muito alto, como um baque de algo pesado, que fez com que me levantasse rápido para ver o que estava acontecendo, porém, eu parecia ter sido a única a escutá-lo, todos agiam normalmente. Girei meu corpo e vi que havia uma pequena esfera metálica - de aproximadamente 10cm - rolando pela sala de aula, notei que nela tinha algumas marcas, uns desenhos delicados que pareciam ser talhados a mão. 
  Ouvi o sinal para a troca de professores e aproveitando a deixa fui à janela olhar o tumultuo que havia se formado do lado de fora e aproveitei para recolher aquele globo. As pessoas lá embaixo olhavam intrigadas para cima, no céu se formavam sinais semelhantes à bola em minhas mãos. Eu analisava a simetria de ambas, mas quando alinhei os dois desenhos o espécime começou a ficar gelado, o peso foi aumentando muito, saindo luzes muito fortes piscando em todas as direções, os alunos pararam para prestar atenção, o próximo professor também, e não suportando segurá-lo mais, minhas mãos abriram bruscamente deixando-o cair no chão. As pessoas ao meu redor começaram a perguntar se eu sabia o que era aquilo, o motivo de estar segurando, iam se aproximando e fui me sentindo sufocada.

  A esfera começou a vibrar e flutuar, o que prendeu a atenção de todos, outra luz se acendeu que escaneou a sala inteira analisando cada rosto, e chegando ao meu, parou. Um holograma foi projetado na minha frente com a imagem de um ser (extraterrestre) transparente, o que nos permitia ver todos seus órgãos, com um rosto fino, orelhas grandes e pontudas, como de elfos, e olhos pequenos e verdes.

  Começou a falar que vinha em paz - e realmente não parecia ameaçador- e que precisava de nossos gases, os poluentes, porque seu povo enfrentavam uma grande crise e esses fluidos eram vitais para a sobrevivência de seus seres e para suas tecnologias. Ele propôs uma troca de favores, nós disponibilizariam todo nosso recurso poluente e eles livrariam nosso mundo de todo o mal que o homem trazia com seus excessos, além de melhorar nossa atmosfera, o que aumentaria a vitalidade da Terra. Logo após desapareceu, deixando a esfera para trás, que trazia o nome "Emily Claire" gravado nela.
 - Emily! Emily ! Você está prestando atenção no que estou falando ?? - Falou a professora, cortando-me de meus sonhos, o que fez com que minha dor de cabeça voltasse a me incomodar. Ignorei-a e olhei no relógio que ainda marcava 10h15, parei meu olhar na janela onde teria a suposta marca, e vi algo pequeno e metálico vindo em direção a sala de aula.

Querem me conhecer?

Querem me conhecer? Me leiam, devorem-me com a boca e os olhos, me toquem como crianças atrevidas, Me mordam e assoprem, desvendem-me os mistérios e angústias, o desespero que lhe assola vocês podem assisti-lo sendo descrito por minhas mãos pálidas e congestionadas. Engulam-me, mastiguem-me, vomitem e me regurgitem para tua vasta casta de seguidores e admiradores. A cada linha que escrevo, é um terço de minha personalidade que é demonstrada, apurem-se bem de interpretação de texto, pois sim, as entrelinhas estão cheias de mistérios, mas lá também residem as verdades. Na solidão se faz um testamento em forma de manifesto, testemunho da gestação de algo indigesto a vossos ouvidos “puros”. Desamores? Tenho aos montes, coleções de feridas e palavras insanamente ditas sem pensar, marcas em minha mente, delas retiro a inspiração, dentro de meu exílio, carinhosamente apelidado de retiro. Não sigo métricas ou receitas especializadas, alguns dizem que psicografo, pode até ser, meus poemas são histórias ou estórias que vi, ouvi ou vivo, protejo o ator principal, colocando-me em primeira pessoa, sou o ser que conta e em outras vitórias sou aquele que recebe o soco. A poesia de mim é o fumo solto de um cigarro recentemente apagado, para curar a ansiedade e a saudade de alguém. Desço ao inferno na terra, para trazer o céu em forma de poesia para aqueles que se perderam pelos entorpecentes. Vou a um rasante voo, num dia nublado e obscuro, me embriagando de minhas próprias palavras e tormentos. Com as maldições que me atiram com suas tecnológicas metralhadoras faço retratos, seus, meus e nossos. De amores a rancores, desenho retratos com sombrios adjetivos. Os novos Dons Juan são fabricados em massa nas academias pertencentes aos Dorian Grays, trocam saliva com seus próprios reflexos neste espelho sujo. Não te incomodes isso são só apenas frutos de uma fugaz apresentação àqueles que não estão familiarizados com tamanha melancolia, disfarçada de destreza e força, sigais teu caminho, assim como seguirei a escrever.

Pierrot Ruivo

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Reflexo inesperado


Eu caminhava. Mesmo que sem destino e sem foco. Uma pedra aqui. Uma folha seca ali. Uma garota vestindo roupas rasgadas, cabelos presos e sapatos velhos e sujos, sentada em um banco de praça com a cabeça jogada para trás, logo mais a frente. Eu continuei a caminhar. Não pretendia parar. Mas ela se sentou normalmente, direcionando seu olhar para mim. Os olhos pequenos semicerrados como sinal de cansaço, vermelhos, inchados, com olheiras. O lápis preto no seu olho quase saia. E como eu havia parado, então, ela sorriu. Sorriu como quem não quer nada. Mas era meio psicopata. Deixou uma de suas mãos cair sobre a própria coxa e escorregar lentamente para a bota suja no pé. Tirou de dentro dela um cigarro, me olhou novamente. "Tem fogo?"  Não tive resposta, eu simplesmente a olhava. Vi nela um reflexo. Por mais que estivesse de calça de brim bege, camisa social rosa, cachecol, bota de cano alto, algumas pulseiras e uma touca. Eu vi nela o meu espelho. Eu poderia estar bem vestida, e ela não. Poderia estar bem aparentemente e ela não. Mas ela era meu estado emocional, o que eu escondia e ninguém via. As mágoas afogadas num mundo repleto de aparências e que julgam seu ser sem sentido. E então, me sentei do lado dela. Entreguei minha caixa de cigarros e meu esqueiro. E ainda respondi "perdão, eu não tenho fogo" ela me olhou confusa, olhou para o esqueiro, o ergueu, me mostrou. Abriu um pouco a boca como se fosse dizer algo e fechou. Quando ela me viu tragar, me encarou e seu rosto tomou feição de compreensão. "Você estava falando sobre viver não é?" Apenas fechei o olho soprando mais um pouco de fumaça para cima, soltando o cachecol. Tentando me perder. E balancei, vagarosamente, a cabeça com um sinal positivo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Por que "Era uma vez"?

Não sei, exatamente, o porquê de começar com "era uma vez" se não teremos um "felizes para sempre". Muitos me julgarão como negativista, talvez. Mas, não é isso. Talvez o importante não seja, afinal, ser feliz para sempre, e sim feliz enquanto pode. Até porque, todos sabemos que há um fim. Há um fim no café do fim de tarde, há um fim da leitura da madrugada, há o fim dos minutos no parque de diversão, há o fim da chuva que cai devagar, há o fim do dinheiro, dos bens materiais, até do sentimento. Como vou ser feliz para sempre, se eu mesma terei um fim? Até que o mesmo chegue, não ficarei sentada esperando no alto da minha "torre" por um príncipe encantando que venha me tirar do tédio incansável e interminável. Não. Eu vou agir, eu vou viver, eu vou ser livre, custe me o que custar. Haja o que houver. Minha felicidade (eterna ou não) ninguém paga, e ninguém me compra. Enquanto eu puder buscá-la a buscarei. Não estou em busca de finais felizes, busco "meios felizes" e principalmente "inícios felizes", Claro, haverá clímax, haverá drama, ação, aventura, dor, haverá tudo. Mas tudo isso apenas existirá porque estarei em busca da minha felicidade, não quero passar a minha própria história adormecida enquanto outros tentam salvar a mim. Eu sou capaz, Deus me deu duas pernas e dois braços, eu sei me virar.